Escrito em 30 de março
Publicado em 8 de julho.
Depois de amanhã é meu aniversário e a última vez que escrevi aqui foi poucos dias após o anterior. Isso mostra que eu realmente não sou bom com frequência de publicação, e também que essa é uma época tempestuosa na minha cabeça.
Dessa vez não vou pedir para o leitor abandonar o texto porque ele vai ser ruim — acabo de reler os anteriores e tive orgulho —, mas sim, porque estamos entrando em águas mais profundas e eu não sei lidar direito com sentimentos. É isso. Não será um texto ruim, necessariamente, mas será sim, um texto confuso, provavelmente.
Introdução
Tem uma música da Clarice Falcão que eu gosto muito e sempre que eu ouço parece que foi feita pra mim. É claro que várias músicas me dão tal sensação e esse é um sentimento que todo mundo tem algumas vezes na vida. Mas essa — Minha Cabeça, do disco Tem Conserto — é que mais me pega de jeito.
Minha cabeça não é flor que cheire
Minha parceira não faz nada que eu peço
Minha cabeça repete as mesmas coisas,
repete as mesmas coisas, até não ter mais coisa.
Minha cabeça me faz crer que sou doida,
e aí me deixa doida, vê só a ironia.
Minha cabeça só faz me passar a perna,
e eu não sei se ela é minha ou se eu que sou dela.
Um filme que eu amo muito, Clube da Luta (1999), e um filme que é bem bom mas eu não sou tão apaixonado assim, Taxi Driver (1976), me fizeram perceber que nem sempre a pessoa nasce doida, às vezes é a solidão que deixou ela assim. E como quase todas neuras e nóias que carrego hoje nasceram na pandemia, às vezes acho que a solidão me deixou doido também.
Não doido do tipo que inventa um amigo imaginário com a cara do Brad Pitt ou adota um corte moicano e tenta assassinar o futuro presidente, mas sim, doido do tipo que se torna consciente dos próprios sentimentos, mas nem por isso consegue lidar com eles.
Lembro que até 2019 — véspera da pandemia — eu acreditava ter muitos amigos. Não tinha, mas achava que sim. E lembro que eu era irritante pra caramba. Insuportável. Lembro de ser estúpido gratuitamente com certas pessoas — algumas, com o tempo, percebi que mereciam mesmo e perdi o peso na consciência.
Lembro que eu fazia merda sem perceber que estava fazendo. Lembro de tentar ser amigo de gente que claramente não gostava de mim e lembro de fingir gostar de gente que fingia ser meu amigo. Lembro de me achar o ápice da régua moral. Lembro de me achar imperfeito, intocável, inquestionavelmente melhor que a maior parte das pessoas. Lembro de achar que eu não errava nunca.
Só que veio a pandemia,
E foi aí que minha cabeça decidiu me deixar doido.
O Texto
Foi a lendária atriz Judy Garland que uma vez disse “o pau do Frank Sinatra era tão grande, que quando fui cheirar uma carreira de pó nele, tive que parar na metade para recuperar o fôlego”.
O impacto do isolamento social na minha vida foi tão pesado, que tive que me fechar do mundo para conseguir retornar consciente.
O que eu quero dizer é que: foi justamente nesse momento de se trancar em casa e esperar a hora de voltar à vida normal, que percebi o que precisava consertar em mim. É bizarro pensar em como o isolamento — ficar à parte da vida levada antes, sozinho em um só lugar, sem o movimento do dia-a-dia normal — muda a perspectiva sobre nossas próprias ações. Foi preciso sair do automático da vida para perceber o que havia de errado.
A consequência dessa análise, nada mais é que a consciência da necessidade de mudar. Porém, para pôr as mudanças em prática, é necessário voltar ao mundo exterior. E aí, fodeu.
Fazendo uma analogia pavorosa, é possível comparar o ato de tirar a máscara com a queimadura química do Narrador no Clube da Luta. Assim como a cena do filme para o pobre do Edward Norton, esse momento foi bem difícil para mim. Do meu grupo de amigos, fui o último a fazer essa transição. O último a tirar a máscara, o último a frequentar os lugares como antes, o último a ir às festas, o último a se acostumar com o toque novamente.
O motivo primordial, obviamente, foi o medo do vírus. A pandemia toda foi um período de muito medo o tempo todo. Espiralei completamente, era daquelas pessoas que acordava e dormia assistindo às notícias, toda nova informação sobre o covid eu caçava de imediato, campanha pelo uso da pff2 vinte e quatro horas, contando os dias para tomar a vacina. Fui, inclusive, segundo a moça do posto de saúde, o primeiro da minha faixa etária na cidade a agendar a vacinação — para você ter noção da ansiedade.
Os motivos colaterais, que intensificaram um tempo depois, foram as dificuldades acerca da socialização. Não dificuldades nosofóbicas referentes ao vírus, mas sim, emocionais. A dificuldade de voltar à ver e falar com as pessoas.
Durante minha quarentena, período de ansiedade, depressão, solidão, arrependimento, tristeza, raiva, angústia e muitos mutirões pelo Gil do Vigor, acabei inconscientemente cortando minha comunicação com meus amigos. Olhando para trás, eu penso “puta merda hein” mas não há o que fazer, esse era o estado do meu eu de quatro anos atrás e cabe à mim aceitar.
Isso, é claro, foi o fator que dificultou justamente essa jornada da ressocialização. Além do medo de pegar o vírus, o motivo primordial, tínhamos o fator colateral da ansiedade social recém desenvolvida, que carregava com ela a jornada de redescoberta pessoal citada anteriormente e, agora, o sentimento de não pertencimento mais à vida das pessoas ao redor. A sensação de assistir a vida voltar ao normal e pensar “bom, acho que ninguém mais precisa de mim”.
Em 2023, após alguns anos em espiral, desenvolvi um novo plano para voltar à vida normal. Como o que acabou com a sanidade foi o tempo ocioso da pandemia, a ideia era impedir minha cabeça de ter tempo de me deixar doido. Como? Me enchendo de trabalho. Trabalhava o máximo que podia, com o máximo de tarefas que conseguia, pelo maior tempo que daria. Quando não estava trabalhando, estava dormindo. Quando não estava dormindo, estava pensando no trabalho. Quando não estava pensando no trabalho, estava pensando em dormir.
Levando o ditado “cabeça vazia, oficina do diabo” mais a sério que nunca, essa foi minha rotina durante boa parte daquele ano. Não digo que foi uma estratégia muito saudável, confesso, mas é o meio que encontrei naquele momento. Pode não ter resolvido a bagunça mental, mas pelo menos adiou e substituiu algumas noias por outras.
Nesse mesmo período, substituí a música pelo cinema como meio de escape. Quando a fuga da ansiedade e dos pensamentos tenebrosos era tanta, que qualquer tempo ocioso passou a se tornar um perigo. A música se torna a trilha sonora da vida e das dores que acontecem conosco. O filme nos transporta para uma vida diferente, cuja realidade, trajetória, aventura e feridas são distintas e sabemos que têm hora para acabar.
O momento de obsessão pelo trabalho foi se dissolvendo ao longo que o desejo de voltar à viver crescia, isso na segunda metade daquele ano.
Com vários obstáculos, é claro, como o constante medo de incomodar as pessoas (esse ainda é um desafio diário), de falar a coisa errada, na hora errada, no lugar errado. O medo de se aproximar das pessoas — por ter consciência da possibilidade de perdê-las —, o medo de estar desperdiçando tempo, o medo de ser um fardo a ser carregado pelos outros, o medo de ser mal visto, o medo de cometer os mesmos erros de antes. Quanto medo, medo de tudo. Aí está outro ponto: após a pandemia, me tornei uma pessoa medrosa.
Se arrependimento matasse.
Em agosto do ano passado, quando assisti pela primeira vez o filme “mid90s” — dirigido pelo equivocado Jonah Hill e protagonizado pelo fofíssimo Sunny Suljic —, ele se tornou um favorito instantâneo, principalmente pelo momentum em relação à minha vida.
O longa conta a história de Stevie, um garoto sem amigos que começa a sair com um grupo de companheiros que gostam de ir para a pista andar de skate, tomar bebida barata e fumar baseados. Stevie começa tímido, falando pouco, desengonçado, perdido, sem entender a dinâmica ou costumes daqueles garotos, mas a cada dia que passa, simpatiza e se aproxima mais deles. Stevie descobre a beleza da vida comum. A beleza presente na simples ação de dar uma volta, rir, dividir uma cerveja, ficar chapado e fazer besteira. A beleza de conhecer e reencontrar pessoas. A beleza dos ganhos, e das perdas também. A beleza da vida. Tem vezes que a vida é boa, sim.
Esse filme carrega consigo uma melancolia bonita — ou uma beleza melancólica — que dá um aperto do coração. A fotografia, os personagens, a trilha sonora… Tudo aqui é um pouco triste, mas também muito bonito. Assistindo, me peguei esquecendo que aquilo era um filme. Me senti vendo uma fita dos velhos tempos com os amigos. Me senti com saudades de coisas que nunca vivi. Corrigindo: com saudades de coisas muito parecidas com o que eu vivi.
É parte da beleza do cinema. Além de descobrir vivências diferentes da nossa, podemos testemunhar histórias que espelham nossa própria realidade. Ou matar a saudade do que já foi nosso. Ou ainda, imaginar o que poderia ter sido.
É o filme que me conseguiu a resposta para a clássica pergunta do Abujamra: às vezes a beleza é tamanha que só nos cabe chorar diante dela.
Conclusão
Syd Matters é uma banda francesa que não lança material próprio já faz um tempinho — 14 anos — mas sempre revisito o disco deles de 2005 “Someday We Will Foresee Obstacles”. Não é muito um álbum de produções enormes, ou vocais fenomenais, é mais um projeto de… vibe. Tem uma faixa que é minha favorita, “Obstacles”, que é bem simples, só um verso seguido de repetições. Mas, algo que me marca nela é aquele mesmo sentimento da música da Clarice Falcão: ela foi feita pra mim. Dessa vez num cenário mais otimista, o que faz bem de vez em quando.
Tudo que foi citado no Texto, vem acompanhado de muita coisa que não coube nele, ou que foi melhor não incluir. O que me apavora um pouco, porque é sentimento demais pra tão pouco tempo. Mas o tempo passa e minha cabeça já é bem mais minha do que eu sou dela, ou seja, estamos caminhando em direção à normalidade.
Se tudo der certo, logo, logo, vamos poder prever os obstáculos através da nevasca. Sem máscara, sem medos, sem mais espirais.
Porque no fim das contas, tudo tem conserto.